JANEIRO BRANCO: SAÚDE MENTAL E O PAPEL DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Rita de Cássia Tassi

Psicóloga - CRP 23/1534

 

 

De acordo com o Dicionário Aurélio de Português (Ferreira, 1999), a definição de “avaliar” é: “determinar o valor de; compreender; apreciar, prezar; reputar-se; conhecer o seu valor”. 

Percebe-se que, em sua definição, não encontramos expressões como “mensurar; medir; definir; calcular” ou mesmo “aferir”, costumeiramente atreladas à Avaliação Psicológica.

Portanto, quando se fala em Avaliação Psicológica, não estamos falando apenas, em métodos quantitativos, de mensuração das qualidades e déficits de um sujeito, nem mesmo em uma classificação nosológica. Estamos falando em aprofundar conhecimentos sobre um determinado indivíduo, como um todo, em suas dimensões emocional e comportamental, seus vínculos, características cognitivas, identificações, dificuldades, história de vida etc. Considerando-o como um ser único, inserido em contextos variados (social, biológico, familiar, histórico, político, entre outros), sem reduzi-lo ao papel de um objeto protocolável, ressignificando assim, a utilização de métodos, técnicas e instrumentos psicológicos, na prática da Avaliação Psicológica.

E enquanto profissionais, estamos incluídos nesse contexto, podendo interferir, de forma positiva, ou até mesmo negativamente, na vida do sujeito, de acordo com o modo como estabelecemos contato, e vinculamos com a pessoa em avaliação.

Por isso, a importância de ressignificarmos esse processo, que teve seu início no final do Século XIX, utilizando-se de medidas e métodos classificatórios, utilizando-se de um modelo, onde o uso de testes era fundamental e, sobre o qual não havia nenhum questionamento, trazendo grande credibilidade à Psicologia (Macedo, 2004).

Os psicólogos clínicos, a maior parte do tempo, dedicavam-se a fornecer dados de testes padronizados, para facilitar e suportar um diagnóstico diferencial, e planejar um tratamento (Weiner & Greene, 2008).

Porém, de lá para cá, grandes avanços foram concebidos. A Avaliação Psicológica passou a ser compreendida como um processo dinâmico, e se aperfeiçoou (e continua se aperfeiçoando), evoluiu, assim como sua importância e sua abrangência, abarcando os mais diversos contextos.  

Os testes por sua vez, tornaram-se instrumentos auxiliares da Avaliação Psicológica , sendo utilizados, quando é preciso fundamentar o trabalho com material fidedigno, passível de reaplicação, que chegue a conclusões confiáveis, em curto espaço de tempo, para uma tomada de decisões (Primi, Nascimento & Souza, 2004).

Esses avanços, fomentaram uma reflexão contínua, uma revisão, uma ressignificação do processo de Avaliação Psicológica, despertando questionamento fundamentais, como os propostos por Machado (2011):

 “Qual o objeto da Avaliação Psicológica? Sobre o que, temos realizado um trabalho no qual elegemos valores, do qual apreciamos o mérito?”

Para a referida autora, “esse objeto tem sido denominado aspectos psicológicos de uma pessoa”, o que nos apresenta dois problemas: 1) “Não existem ‘os aspectos psicológicos’ de uma pessoa”; 2) “A vida psíquica, como um objeto a ser avaliado, foi constituída sob certas condições de possibilidades históricas. Os objetos que elegemos não são naturais: o casamento, a adolescência, os problemas escolares, a depressão, o autismo, a criança, o aluno e o bebê, são efeitos de relações, não existem em si, constituem-se no decorrer da história”.

O indivíduo, portanto, para Machado (2011), “é constituído por relações de saberes, de poder, por práticas. Ele é, o efeito de um campo múltiplo de forças, uma construção histórica, em uma rede de relações”.

Somos resultado de nossa genética, de nossas experiências, de nossos relacionamentos, vivências e contextos em que estamos inseridos. Somos, portanto, dinâmicos, estamos em constante mudança, não podemos ser reduzidos a um diagnóstico, rotulados para sempre como não habilitados ou, reduzidos e condenados a viver eternamente sob o rótulo, de nossos déficits, transtornos, agruras e adversidades. Ansiando por uma solução.

O processo de Avaliação Psicológica, nas palavras de Machado (2011),  assim como qualquer trabalho, imprime uma força, ao se propor interpretar uma situação. E dessa forma,  “altera o campo de forças daquela situação, uma vez que a interpretação, é sempre uma escolha, em um campo amplo de possibilidades”.

E assim o faz o psicólogo, ao realizar tal processo, uma vez que, ele possui a prerrogativa de decidir, de que forma realizará a investigação dos fenômenos psicológicos e, como fundamentará suas conclusões, provendo informações à tomada de decisões (CFP, 2022), sobre a vida do avaliando[1] e de que forma realizará a  entrevista devolutiva a essa pessoa.

Assim, as situações a serem avaliadas, sejam dificuldades emocionais, dificuldades intelectuais ou adversidades nas situações familiares, fazem parte do campo de forças de uma determinada situação. Mas, quando esses acontecimentos são tratados como existências em si (“as” dificuldades, “as” adversidades etc.) e, a Avaliação Psicológica é realizada remetendo-se a um funcionamento ideal, as situações tornam-se objetos, e reforça-se a ideia de que, algo está faltando para se alcançar o ideal: faltaria capacidade, faltaria estrutura psíquica, faltaria um bom funcionamento familiar, faltaria uma professora com tempo (Machado, 2011).

E, “quando uma escrita usa o verbo ser, e fala dos sujeitos como dados, cria-se um circuito: esses sujeitos, se tornam objetos de Avaliações Psicológicas, que produzem a sensação de falta nesses sujeitos-objetos. Dessa forma, produz-se um efeito de verdade: acreditar que conflitos, dificuldades e dúvidas são problemas/causas a serem eliminados” (Machado, 2011).

E então, Machado (2011), nos propõe novos questionamentos: O conflito é ruim? Apresentar dificuldades é algo que não deveria acontecer? Uma professora deve sempre conseguir os resultados que almeja?

Sob essa ótica, não seria então, a Avaliação Psicológica, uma oportunidade de fomentar  mudanças, possibilitar crescimento, evolução ou reflexão, na qual o psicólogo, se torna o agente promotor de esperança, a partir de todas as informações coletadas?

Destacar as habilidades, os potenciais, promover o autoconhecimento e elevar a autoestima, promover a autocompaixão, incentivar a criança, o adolescente ou adulto, o idoso, a explorar novas possibilidades, poderiam também ser uma expressão da Avaliação Psicológica?

Não seria a oportunidade, para o psicólogo, de imprimir uma força que ressignifique esse processo, junto ao indivíduo, como uma valiosa oportunidade de mudar aquilo que é tido como objeto da avaliação, e de aprimorar outros tantos talentos, que nesse processo podem ser descobertos ou destacados, e assim, apontar a direção para novos caminhos, novas soluções, no sentido do crescimento?

Se a Avaliação Psicológica, tem por objetivo (na maioria da vezes), verificar determinadas características psicológicas de uma pessoa, (CFP, 2003), a fim de realizar um diagnóstico, ou determinar se um indivíduo pode ser considerado habilitado (ou não),  para exercer determinada atividade, esta também poderia servir, nas palavras de Franzin Neto (2023), “para buscar entender, as diferenças individuais, no que diz respeito às suas capacidades, habilidades, características de personalidade, comportamentos ou algum possível conflito (interno ou externo) de determinada pessoa”.

Surge então, um convite à reflexão, para as possibilidades de um olhar mais humanizado, e sensível, sobre o dito “objeto” avaliado, e os fenômenos psicológicos, que se torna possível quando a Avaliação Psicológica caminha também, no sentido de potencializar os aspectos positivos, o que é saudável, e criar possibilidades de mudanças.

Não se trata de negar a verdade, ou mesmo de enganar o avaliando, mas sim, de oferecer a oportunidade, sempre que possível, de ampliar o olhar sobre si mesmo, buscando um equilíbrio entre aquilo que pode não o favorecer, em determinado contexto ou momento de sua vida, e aquilo que ele tem melhor, promovendo saúde mental, qualidade de vida e bem-estar.

A Avaliação Psicológica, é uma ferramenta poderosa de tomada de decisão, com  benefícios indubitáveis para os indivíduos, para organizações, e para a sociedade.  Quando bem utilizada, contribui não apenas para melhorar a vida de uma pessoa, mas também, para mudar as relações de saber e poder e, com isso, buscar as possibilidades de alterá-las, na direção de um movimento de potencialização de vida, de criação, de saúde, de produção de conhecimento (Machado, 2011; Franzin Neto, 2023)

Deve-se assumir, com destaca Machado (2011), que a Avaliação Psicológica cria verdades, cria realidades e não apenas as revela. E, que realidades podemos/queremos criar? 

De acordo com Santos (2011), é impossível minimizar o impacto, que os resultados das Avaliações Psicológicas têm para as pessoas, grupos e para a sociedade. E nem por isso, a Psicologia pode se furtar à difícil tarefa de avaliar. O importante, é que o psicólogo tenha em mente, a importância de não tornar esse processo e essa interação, uma prática exclusiva de rotulação, causadora de sofrimento (ou de mais sofrimento).

Para Barros (1999), o interesse da Avaliação Psicológica, deve estar voltado para a forma como o sujeito vive, e experimenta o seu estado de saúde ou de doença, na sua relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo. E mais, deve ter como objetivo, fazer com que as pessoas incluam no seu projeto de vida, um conjunto de atitudes e comportamentos ativos que as levem a promover a saúde e prevenir a doença, além de aperfeiçoar técnicas de enfrentamento no processo de ajustamento ao adoecer, à doença e às suas eventuais consequências.

Rovisnki (2006), nos lembra que, qualquer conhecimento pode ser usado para o bem, e para o mal. O diagnóstico psicológico, não é diferente. Ele pode ser utilizado para ajudar pessoas, promover o autoconhecimento e informá-las sobre suas oportunidades, ou ser um instrumento de rótulo e exclusão. Sendo assim, fazer ou deixar de fazer um diagnóstico, pode ter os mesmos efeitos danosos, a depender do efeito provocado no examinando – o de inclusão, ou de exclusão, do seu grupo social.

Nesse sentido, Repold (2011), destaca que, para se tornar uma Avaliação Psicológica válida, é preciso observar princípios éticos, técnicos, coerência teórica e metodológica. Mas, além disso, “é preciso atentar para a responsabilidade social, para com as informações que o psicólogo constrói, ou que irá construir, sobre os sujeitos que atende/atenderá, pois estas, poderão subsidiar tomadas de decisões sobre a vida dessas pessoas”.

A Psicologia, vem avançando de forma significativa, na busca por instrumentos e técnicas, que possibilitem não apenas a compreensão dos fenômenos psicológicos, como resultado de múltiplos fatores (Cescon, 2013), como também, tem avançado na formação de uma visão mais abrangente da própria Avaliação Psicológica, e dos indivíduos nela envolvidos (paciente/cliente e psicólogo).

Dentro desse processo de Avaliação Psicológica ampliada, global e humanizada, os esforços se dão no sentido de percebermos que,  esse processo “pode ser um importante momento de escuta, uma oportunidade para que o próprio sujeito possa compreender sua realidade, adquirindo assim, uma visão crítica, de si mesmo, e do mundo, portanto, uma ação que pode ser transformadora em si” (Cescon, 2013).

Em tempos em que a Saúde Mental passa a receber mais atenção, por parte da população, da mídia e das redes sociais, com famosos e anônimos, falando abertamente, sobre um assunto que já foi considerado tabu, o psicólogo assume lugar privilegiado em sua promoção e prevenção, indo muito além de realizar Avaliações Psicológicas, e fornecer resultados de testes.

O psicólogo, cresce em seu papel e compromisso de auxiliar as pessoas, na compreensão sobre a importância da prevenção, do falar a respeito dos processos mentais, e de nossas dificuldades e dores, durante o ano inteiro. Afinal, Saúde Mental não é um assunto apenas, para o mês de janeiro.

 

Referências

Barros, T. M. (1999). Psicologia e Saúde: intervenção em hospital geral. Aletheia [online], 10, 115-120. https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/lil-404003

 

Cescon, L. F. (2013). Avaliação Psicológica: passado, presente e futuro. Estudos Interdisciplinares em Psicologia. Londrina,  4(1),99-109.

 

Conselho Federal de Psicologia. Resolução Nº. 007/2003. Brasília

_________. (2022). Resolução Nº 031/2022. Brasília.

 

Franzin, L. Neto. (2023). Avaliação psicológica: importância e principais benefícios. Blog Vetor Editora. https://blog.vetoreditora.com.br/a-importancia-e-beneficios-da-avaliacao-psicologica/

 

Ferreira, A. B. H. (1999). Dicionário Eletrônico Aurélio Século XXI. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira e Lexikon Informática, Versão 3.0. 1 CD-ROM.

 

Machado, A. (2011). Avaliação Psicológica e as relações institucionais. Ano da Avaliação Psicológica – Textos Geradores. Conselho Federal de Psicologia.

 

Macedo, G. (2004). Avaliação dos testes Psicológicos - CDROM– SATEPSI – Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos. Conselho Federal de Psicologia.

 

Primi, R., Nascimento, R.S.G.F., & Souza, A.S. (2004). Avaliação dos testes Psicológicos. In Avaliação dos Testes Psicológicos: Relatório . CDROM – SATEPSI – Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos.

 

Reppold, C. T. (2011). Qualificação da Avaliação Psicológica: critérios de reconhecimento e validação a partir dos direitos humanos. In: Ano da Avaliação Psicológica- Textos Geradores. Conselho Federal de Psicologia.

 

Rovinski, S. L. R. (2006). Avaliação Psicológica: processo de inclusão ou exclusão social? Jornal Entre Linhas, CRP RS, 34, 4.

Santos, A. A.A. (2011). O possível e o necessário no processo de Avaliação Psicológica. Ano da Avaliação Psicológica – Textos Geradores. Conselho Federal de Psicologia.

 

Weiner, I. B., & Greene, R. L. (2008). Handbook of personality assessment. Wiley.

 



[1] Sempre em conformidade e respeitando as normas vigentes.