Terrorismo Doméstico e Organizações Paramilitares - Guerra Irregular

Deborah Chrystine Peixoto Alves
Publicado em: qua, 03/08/2022 - 17:21

INTRODUÇÃO
O Direito Internacional Público (DIP), em sua acepção clássica, busca disciplinar as atividades dos sujeitos de Direito Internacional – os Estados e Organizações Internacionais. De forma mais contemporânea, seguida por boa parte da doutrina nacional, também são admitidos como sujeitos de DIP os indivíduos, sujeitos originários do Estado.

MAZZUOLI (2020, 13ª edição, pág. 77), por sua vez, conceitua o Direito Internacional Público como o conjunto de princípios e regras jurídicas (costumeiras e convencionais) que disciplinam e regem a atuação e a conduta da sociedade internacional (formada pelos Estados, pelas organizações internacionais intergovernamentais e também pelos indivíduos), visando alcançar as metas comuns da humanidade e, em última análise, a paz, a segurança e a estabilidade das relações internacionais.

PORTELA (2017,9ª edição, pág. 643) conceitua a Guerra como o conflito armado que envolve Estados soberanos e cujo objetivo principal é solucionar uma controvérsia pela imposição da vontade de uma das partes na disputa. Embora já tenha sido o principal método de resolução das controvérsias internacionais, atualmente o desenvolvimento de Guerras é restrito por uma série de regras internacionais, que buscam priorizar o diálogo, a promoção da paz e a solução pacífica de conflitos.

MAZZUOLI (pág. 1.556 e ss.) aponta que o fenômeno da Guerra é, atualmente, uma matéria regida e disciplinada pelo Direito Internacional Público; além do jus ad bellum (o direito da guerra, o direito de promover a guerra), aparece o jus in bello (o direito na guerra, as normas relacionadas às situações de guerra) como resultado de uma longa evolução histórica em que o Direito (especialmente o Direito Internacional) passou a abordar tópicos envolvendo o uso força armada, impondo-lhes inúmeras restrições.

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Um preceito básico do Direito Internacional público é que o uso de medidas de força é vedado por suas regras, salvo nas hipóteses de legítima defesa ou violência injustificada contra Estados.

Podemos considerar, desse modo, que uma Guerra regular (ou convencional) corresponde a uma confrontação militar formal entre forças armadas de Estados distintos, organizados e estáveis, na qual devem ser observadas certas regras de Direito Internacional – como, por exemplo, aquelas relativas ao tratamento de prisioneiros, ao respeito à população civil etc.

O estabelecimento de tais normas objetiva conferir aos soldados, prisioneiros e demais envolvidos condições mínimas de dignidade e respeito.

Neste tipo de conflito, geralmente existe a separação entre civis e soldados, assim como a separação entre territórios.
Em oposição, existe também a Guerra irregular, que será o objeto de nossa análise nesse trabalho. Devemos começar com a sua conceituação e classificação.

GUERRA IRREGULAR - DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO
VISACRO (2009, pág. 264) considera que o caráter informal, dinâmico, flexível e mutável do combate irregular tem contrariado o cientificismo acadêmico, tornando a tarefa de conceituá-lo bastante complexa. O autor (pág. 264) aponta denominações diversas: “pequena guerra” (kleinkrieg), “guerra de partisans” (partisan warfare), “guerra não convencional” (unconventional warfare), “guerra irregular” (irregular warfare) e “conflito de baixa intensidade” (CBI).

A Guerra não convencional (em inglês, unconventional warfare ou UW) é a modalidade de guerra conduzida com ou através de forças irregulares, na qual, ocorre a criação e/ou fortalecimento de um movimento armado de resistência, revolução ou insurgência com o intuito de perturbar, coagir, enfraquecer ou vencer uma guerrilha ou governo inimigo.

É também chamada de conflito assimétrico, uma vez que os oponentes apresentam diversas diferenças, tais como nível de organização, objetivos, recursos financeiros, recursos militares, comportamento e obediência a regras.

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Assim, a GUERRA IRREGULAR é o conflito armado executado por forças não regulares ou por forças regulares empregadas fora dos padrões normais convencionais, contra um governo estabelecido (movimento revolucionário) ou um poder de ocupação (movimento de resistência) Engloba a guerra de guerrilhas, a subversão, a sabotagem e o apoio à fuga e evasão.

VISACRO (pág. 265) considera que, para compreender a guerra irregular é necessário se partir da premissa de que, nesse tipo de beligerância, não existem regras – o que torna mais difícil estabelecer um conjunto rígido e definido de princípios teóricos que fundamentem a sua aplicação em circunstâncias muito diversificadas. A maior característica da guerra irregular reside na ausência de padrões rígidos – o que lhe permite adequar-se e moldar-se a ambientes políticos, sociais e militares diferenciados. Assim, os conceitos disponíveis sobre guerra irregular apontam para uma forma de beligerância que transcende os limites do campo militar, destacam a atuação de forças predominantemente nativas e fazem referência à guerra de guerrilhas, à subversão, à sabotagem e ao terrorismo.

SOUZA (2014, pág. 37) entende que a Guerra irregular significa, antes de tudo, o abandono das regras oficiais da  Guerra convencional, no sentido de que as convenções estabelecidas pelos organismos  internacionais não são levadas à cabo pelos condutores da Guerra irregular, uma vez que a vantagem contra uma potência superior está justamente na dissimulação dos  “combatentes” junto à população civil, e mesmo na participação desta de forma direta ou indireta nos conflitos, o que contraria todas as convenções preestabelecidas. Na Guerra irregular, os aspectos militares subordinam-se à política e são impulsionados pela motivação popular.

Em um ambiente de combate convencional, as forças se opõem umas às outras, desdobrando suas unidades em grandes esquemas de manobra, e os combatentes de cada exército são identificados por seus uniformes.

A guerra não convencional visa a obtenção vantagens significativas em situações que, sem o uso das forças especiais, gerariam combates longos e desgastantes para serem obtidas. Seus integrantes podem não andar fardados, às vezes até se passar por pessoas que não são, realizar ações de grande vulto e grande poder destrutivo dentro de perímetros até então inatingíveis pelas tropas regulares.

VISACRO (pág. 268) destaca que, com o final da Guerra Fria, em 1990, a Guerra irregular inseriu-se em um novo contexto, no qual o financiamento oriundo do narcotráfico e o extremismo fundamentalista passaram a exercer grande influência – o que passou a demandar uma reavaliação dos preceitos teóricos que interferem em sua concepção, sobretudo na formulação de políticas nacionais de defesa.
O autor (págs. 266-267) apresenta ainda a seguinte classificação em relação à Guerra irregular:

  • A Guerra de independência (ou “guerra de libertação nacional”: Conflito no qual forças nativas dedicavam-se à conquista de sua autonomia política por meio da ruptura dos vínculos de subordinação estabelecidos por uma metrópole estrangeira. Também é aplicável às lutas movidas por grupos étnicos que reivindicam autonomia, nutrindo ambições separatistas e nacionalistas.
  • A Guerra civil: Conflito armado de caráter não internacional que envolve segmentos distintos de uma sociedade conflagrada por razões político-ideológicas, religiosas ou étnicas, em que a decomposição do quadro interno promove o avanço generalizado da violência, incentivando o sectarismo fratricida decorrente de dissensões populares.  Envolve facções de uma mesma nação ou grupo, e possui como objetivo a separação ou a tomada do poder.
  • Sobre o tema da Guerra civil, MAZZUOLI (pág. 577) destaca a chamada beligerância, que ocorre quando, dentro do Estado, verifica-se uma sublevação da população, por meio de movimento armado politicamente organizado, para fins de desmembramento ou de mudança do governo ou do regime vigente, constituindo-se em verdadeira guerra civil. No movimento beligerante, o grupo armado revolucionário detém, sob o seu domínio, parte do território do Estado.
  • Assim, a maior característica do movimento de beligerância é a luta armada de grande proporção, o que viola as normas constitucionais vigentes no país. A finalidade dessa luta é normalmente a modificação do sistema político no qual se encontra o Estado em causa.
  • A Guerra de resistência: Conflito armado conduzido por nacionais contra uma força de ocupação estrangeira, com o objetivo de restabelecer as garantias de sobrevivência da população, a integridade territorial, a unidade política, a soberania e/ou a independência, total ou parcialmente comprometidas pela intervenção externa.
  • A Guerra revolucionária: Forma peculiar de luta armada que abrange as ações no campo militar de um fenômeno político-social bem mais amplo, de cunho extremista, destinado à conquista do poder, à transformação violenta da ordem vigente e à implantação de um “novo” sistema calcado em preceitos ideológicos. Em termos práticos, essa abordagem restringiu a compreensão da guerra irregular, ao estabelecer uma associação indevida entre o combate não convencional e a necessidade de um sistema formal de ideias radicais predefinido.
  • Insurreição: Sublevação popular desprovida de motivação ideológica, fundamentada, apenas, em reivindicações políticas, sociais e/ou econômicas específicas e limitadas, como a concessão de direitos ou a restituição de prerrogativas.

Para ACCIOLY, SILVA e CASELLA (págs. 202-203), quando uma insurreição, com fins puramente políticos, deixa de ter o caráter de simples motim e assume proporções de guerra civil, sem, contudo, se lhe poder reconhecer o caráter jurídico desta, considera-se existir situação de fato que, não podendo ser classificada como estado de beligerância, não deve ser qualificada como situação de pura violência ou de banditismo. O autor ensina que a esse estado de fato – que poderá ser reconhecido por governos estrangeiros, dá-se a denominação de insurgência; seu reconhecimento não confere propriamente direitos especiais aos insurretos, mas produz certos efeitos.

GUERRA IRREGULAR - AMBIENTE FAVORÁVEL
A Guerra irregular é fortemente influenciada por questões relacionadas ao ambiente político e psicossocial na qual surge. Assim, o ambiente favorável à guerra irregular surge da reunião de condições sociais favoráveis, aliada a uma simbologia que fortalece a crença ideológica. Para VISACRO (pág. 269), fatores de ordem histórica, cultural, econômica e psicológica determinam não só a natureza dos conflitos irregulares como também sua amplitude, sua dinâmica, seus protagonistas, suas motivações e suas perspectivas de vitória.

O desenvolvimento da Guerra irregular demanda um ambiente que seja, simultaneamente, propício à manifestação da violência social e sensível a seus impactos; a despeito de existirem elementos comuns e de práticas universais, a abordagem padronizada dos fatores gera equívocos, exigindo, portanto, uma análise particularizada de cada ambiente, levando-se em consideração elementos de caráter político, econômico, histórico e cultural.

VISACRO (pág. 270) recorre à tipologia sociológica estabelecida por Smelser para explicar a dinâmica dos movimentos contestatórios que podem culminar com o emprego da violência armada – sendo que a ação coletiva resultado da interação dos seguintes fatores:

  • Propensão estrutural: a existência de condições sociais favoráveis ao desenvolvimento de movimentos coletivos (contestatórios), de canais que objetivamente permitam a um ator social (não estatal) movimentar-se e organizar formas de protesto ou de alternativa de poder;
  • Tensão estrutural: produz as condições prévias para a manifestação de contradições econômicas, sociais e culturais em que se vão inscrever os movimentos coletivos;
  • Difusão de crenças generalizadas: a formação de um repertório de símbolos que dão força e sentido às ações concretas.
  • São elementos que podem contribuir para o surgimento de uma conjuntura favorável à condução da Guerra irregular os seguintes (VISACRO, pág. 271 e ss.):
  • Contraste social: a coexistência de contingentes populacionais com índices assimétricos de desenvolvimento socioeconômico faz surgir um referencial crítico a partir do qual a massa de desvalidos passa a formular suas reivindicações de justiça social. Sociedades estratificadas nas quais estão presentes questões como a má distribuição de riqueza, a concentração dos meios de produção e do capital, o rígido monopólio econômico exercido por determinados grupos ou segmentos sociais, que, usualmente, também detêm o poder político e asseguram a preservação desse quadro de exclusão apresentam, portanto, maior propensão à violência.
  • Aquisição de um referencial crítico: Quando as parcelas oprimidas da população passam a perceber o jugo opressor sob a qual estão submetidas, nasce a consciência da situação, elemento essencial para transformar insatisfação generalizada em violência coletiva. A obtenção de um referencial crítico é, normalmente, resultado de um dos seguintes fatores:

a) contraste social entre populações que coexistem no mesmo espaço geográfico;
b) melhoria dos índices educacionais das camadas mais carentes, desacompanhada de perspectivas concretas de ascensão socioeconômica;
c) difusão de proselitismo ideológico ou religioso (proselitismo é a ação ou empenho de tentar converter uma ou várias pessoas em prol de determinada causa, doutrina, ideologia ou religião);
d) disseminação dos meios de comunicações globalizados; e
e) fluxos e refluxos migratórios, que viabilizam o contato intercultural, permitem o ingresso de novas formas de pensamento e novas abordagens do cotidiano e, ainda, são capazes de promover a mudança de hábitos e costumes.

  • Incremento demográfico superior à capacidade de ingerência do Estado: Quando a população cresce em um ritmo mais acelerado do que a produção de riqueza, a equidade social e, sobretudo, a capacidade de ingerência do Estado, se estimula a proliferação de ideias extremistas, especialmente entre as camadas mais pobres da população, formando reservas humanas mobilizáveis suscetíveis ao apelo à violência.
  • Conquistas sociais incompletas: Avanços e conquistas no campo social poderão contribuir indiretamente para incentivar a violência, se forem parciais, incompletos, possuírem abrangência restrita ou, ainda, forem objeto de interrupções ou retrocessos.
  • Imobilidade social: Relaciona-se à impossibilidade de ascensão social; um corpo social estratificado e rigidamente hierarquizado que, formal ou informalmente, não permite a ascensão de pessoas oriundas das camadas menos favorecidas, oferece reservas humanas capazes de recorrerem, com facilidade, à luta armada.
  • Preservação de deformidades na estrutura social: A estrutura social corresponde a um sistema de organização da sociedade que decorre da interrelação e posição (status social) entre seus membros. É determinada por diversos fatores, dentre os quais econômico, político, social, cultural, histórico e religioso. A estratificação social é relacionada à estrutura social, uma vez que a sociedade se divide em estratos ou camadas sociais de acordo com uma série de fatores (elementos políticos, religiosos, étnicos, dentre outros).
  • Dívidas históricas decorrentes da manutenção de deformidades na estrutura social são causas perenes de insatisfação.
  • Violência cultural institucionalizada: A violência cultural surge na esfera simbólica, nas crenças e nos costumes dos seres humanos. A violência não está nas crenças e costumes em si, mas na forma como eles são utilizados para justificar ou legitimar formas de violência, com base em diferenças culturais, étnicas e de gênero e pode se manifestar através da arte, religião, ideologia, linguagens e ciência.

A violência social assegura sua continuidade quando perdura no tempo, tornando-se o principal legado deixado de uma geração para a outra, como uma herança cultural quase institucionalizada – uma espécie de “cultura da violência”.

  • Ausência do Estado: As forças irregulares, em geral, desenvolvem-se nas áreas geográficas cuja presença do Estado é tênue. A ausência do Estado por omissão ou ineficiência gera descontentamento coletivo, aumenta as diferenças sociais e diminui a legitimidade do poder central, além de evidenciar um vazio de poder que permite a ascensão de novos atores, predispostos a edificar hierarquias paralelas e assumir o papel que tradicionalmente compete ao Estado, exercendo o controle direto sobre a população local.
  • Ausência de instituições sociais sólidas: A ausência de sólidas instituições políticas, sociais e militares, que gozem de tradição e legitimidade, contribui para a debilidade do poder central e, por conseguinte, para a criação de um ambiente permeável à violência.
  • Experiência militar positiva: esse evento verifica-se, normalmente, em situações nas quais um determinado povo ou segmento da sociedade, desprovido de poderio bélico convencional, adquire uma experiência militar cujo resultado é visto, ao menos por seus integrantes, como bem-sucedido, servindo-lhes de motivação, fonte de orgulho e autoconfiança.
  • Existência de interesses externos antagônicos: Nem sempre os integrantes da comunidade internacional estão do mesmo lado, ou seguem a mesma orientação, seja em questões econômicas, culturais ou sociais.
  • O fomento à guerra irregular pode advir da atuação de um ator externo, que se predisponha a oferecer apoio político, militar, financeiro ou, ainda, a proporcionar bases territoriais e refúgios ativos para o acolhimento de contingentes guerrilheiros contribui para as perspectivas de sucesso de uma campanha irregular.
  • Aspirações nacionalistas: O apelo às aspirações nacionalistas de um povo é considerado como um dos mais eficientes catalisadores de um ambiente propício à guerra irregular, representando, usualmente, o núcleo do conflito.
  • Conflitos étnicos e religiosos: Áreas de incidência de conflitos étnicos e religiosos (nos quais ocorrem lutas tribais, disputas interétnicas ou de motivação religiosa, situações dotadas de elevado potencial inflamatório em relação às paixões das massas, além de agregar extraordinária brutalidade às práticas militares) vivem em estado de tensão latente e geram com notável facilidade um ambiente fecundo à proliferação da guerra irregular.

O fanatismo da fé é um ótimo ingrediente do extremismo político e, portanto, não deve ser negligenciado ou desprezado como fator de influência, embora o aspecto religioso usualmente sirva como disfarce para intenções de cunho nacionalista.

  • Fatores de ordem ideológica: Uma corrente de pensamento ou um conjunto de ideias que se consubstancie em uma doutrina filosófica capaz de proporcionar uma justificativa racional para o curso da história e para as causas da opressão e das desigualdades sociais é especialmente importante para legitimar a violência perpetrada em nome da reparação de injustiças seculares. Frequentemente, o proselitismo religioso, a identidade étnica e o discurso nacionalista também se prestam a esse fim, suprindo a ausência de uma ideologia radical.
  • Atuação da intelligentsia nativa: A expressão “intelligentsia” usualmente designa o conjunto dos intelectuais com poder e influência em uma comunidade, especialmente influência política. A princípio, a palavra tinha um sentido restrito, baseado na autodefinição de uma certa categoria de intelectuais. Posteriormente, passou a ser empregada para designar coisas diferentes: tanto o conjunto dos intelectuais de um dado país, como os grupos mais restritos de intelectuais que se fazem notar por sua capacidade de fornecer uma visão compreensiva do mundo, por sua criatividade ou por suas atividades direta ou indiretamente políticas.
  • Na lição de VISACRO (págs. 279-280), a atuação de uma intelectualidade radical, denominada intelligentsia, contribui significativamente para fomentar um ambiente propício ao desenvolvimento da guerra irregular, sendo necessário haver tanto a compatibilidade entre o proselitismo ideológico da intelligentsia e as aspirações populares, quanto que o discurso revolucionário seja compreendido pelas parcelas mais incultas da população.
  • Falência do regime político vigente: O regime político, na ciência política, é o nome que se dá ao conjunto de instituições políticas por meio das quais um Estado se organiza de maneira a exercer o seu poder sobre a sociedade.

É perceptível que há uma correlação direta entre o estágio de degradação do regime político vigente e a reunião de condições propícias à condução da guerra irregular. Trata-se de um processo degenerativo que se desenvolve principalmente em razão da incapacidade de o poder central atender às demandas sociais: inicia-se, normalmente, pela existência de limitações e deficiências sérias, que podem, com o tempo, levar ao colapso generalizado das instituições políticas. As concessões tardias do poder central, usualmente, são incapazes de refrear o processo de degradação – e o que se vê é o surgimento e fusão de fatores nocivos que passam a interagir, tais como o esgotamento do modelo econômico, a estagnação ou queda na produção de riqueza, crise financeira, descontrole dos gastos públicos, déficit orçamentário governamental, a evidenciação da corrupção e ineficiência administrativa, vínculo frágil entre as forças armadas e o governo (o que gera um ambiente permeável à subversão) e a existência de elites locais que se mostram predispostas a solapar o poder central em benefício de interesses próprios, por exemplo.

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA GUERRA IRREGULAR
VISACRO (pág. 283) ensina que os conflitos irregulares não se distinguem das guerras convencionais apenas em razão do status jurídico das forças irregulares ou pela relativa ausência de hábitos militares, como o uso de insígnias, uniformes e gestos formais de disciplina. A Guerra irregular, a despeito de sua diversidade de manifestação, apresenta algumas características próprias, a saber:

Schwerpuntkt (apoio da população): O termo de origem alemã significa “centro de gravidade” ou “ponto focal”, e designa o apoio da população. Embora na Guerra regular a busca pela destruição das forças inimigas, pela conquista do terreno e pela manutenção de áreas geográficas seja de extrema importância, na Guerra irregular tais fatores estão em segundo plano.

Neste caso, o verdadeiro centro de gravidade encontra-se no apoio da população, apta a dar suporte às forças irregulares no nível tático, ao viabilizar, direta e indiretamente, o funcionamento dos diferentes sistemas operacionais. Em termos estratégicos, a população pode, por meio de seu apoio, prorrogar o término do conflito por tempo indeterminado – e, politicamente, exercem pressão sobre decisões governamentais e influenciam a opinião pública doméstica e internacional.

Para cooptar o apoio ativo de uma minoria e o apoio passivo da maioria da população, as forças irregulares usam métodos como o emprego de técnicas tradicionais de subversão e propaganda, a imprensa clandestina, a pregação ideológica, o exercício de práticas assistencialistas, campanhas psicológicas e fomentar um ciclo crescente de violência.

  • Necessidade de um ambiente político, social, histórico e cultural favorável: A Guerra irregular exige um ambiente propício a seu desenvolvimento; esse ambiente origina-se na interação de uma série de fatores, sobretudo não militares, com razões de ordem política, social, histórica e cultural.
  • Menor relevância dos aspectos militares: Os conflitos irregulares são travados e vencidos, prioritariamente, nos campos político e psicossocial. Tem uma estrutura militar formal e organizada, mais ampla e poderosa, nem sempre é sinônimo de vitória certa, especialmente no caso de Guerra irregular.
  • Preponderância dos processos indiretos: Em razão da costumeira inferioridade bélica convencional das forças irregulares, especialmente no início de suas atividades de organização e expansão, é natural que as ações (ou processos) indiretos tenham prioridade. As forças irregulares atuam por processos indiretos quando conduzem campanhas de operações psicológicas, realizam atos de terrorismo, subversão e outras formas de combate subterrâneo.
  • Estratégia prolongada: Quase sempre, a sociedade civil predispõe-se a apoiar uma determinada campanha militar porque acredita que seu Exército nacional poderá vencê-la com rapidez; porém, quando um conflito se torna prolongado, consumindo recursos orçamentários e vidas humanas, torna-se também impopular, fazendo com que o Estado perca o apoio vital da opinião pública interna.
  • Por tal razão, as forças irregulares buscam alongar ao máximo sua resistência diante dos cenários de conflito, atuando conforme a situação tática ou o cenário político-militar e podendo, inclusive, manter longos períodos de inatividade.
  • Ações táticas efêmeras: Em contraste com a estratégia de desgaste prolongado, as táticas adotadas na Guerra irregular são formadas por ações surpreendentemente rápidas e aptas a provocar um grande impacto, seja pelo momento de sua execução (onde e quando são levadas a cabo), pela natureza do alvo (em especial seu valor psicológico) e ao emprego hábil da mídia e dos meios de comunicação de massa para potencializar seus efeitos.
  • Não-linearidade: Na guerra irregular não existem frentes de batalha, flancos ou retaguarda, pois os combates são travados, de fato, segundo a presença e a postura da população civil, em detrimento da configuração do terreno e da disposição espacial das forças inimigas. O combate não linear é caracterizado pela descontinuidade do campo de batalha, pela indefinição das frentes e das linhas de contato e pela conjugação de diferentes atitudes de combate num mesmo espaço operacional.
  • Difícil detectabilidade: Quando ainda são militarmente frágeis, especialmente em seus estágios iniciais de desenvolvimento, as forças irregulares necessitam preservar sua estrutura organizacional e recursos. Assim, inicialmente, a guerra clandestina é conduzida sem ser declarada, reconhecida ou sequer percebida, sendo as ações progressivamente legitimadas pela aquiescência popular.
  • Busca de resultados psicológicos nas ações de combate: O terrorismo, em especial, tem como fundamento sua capacidade de provocar forte impacto psicológico e, por conseguinte, gerar grande repercussão política. Na guerra irregular como um todo, e não somente no terrorismo, a importância de um objetivo militar está diretamente associada ao seu potencial valor político e psicológico.
  • Ausência de padrões rígidos de planejamento e execução: Na guerra irregular há a predominância da informalidade de táticas, técnicas e procedimentos, em contraste com a inflexibilidade característica da metodologia acadêmica do planejamento militar tradicional.

As ações táticas fundamentam-se na necessidade de neutralizar o poder de combate superior das forças convencionais, de forma que são priorizados ataques a pontos fracos, a determinação da melhor oportunidade de ação, o fator surpresa, obtido por meio do sigilo, a opção por manobras manobra simples e breves, caracterizadas pela rapidez da ação, seguida de uma retirada furtiva previamente planejada, e, por fim, a capacidade de auferir o efeito psicológico pretendido.

  • Insubordinação a restrições legais: O conflito assimétrico mantém essa característica quando analisado em relação à aplicação do Direito Internacional Humanitário. A opinião pública, de um modo geral, mostra-se menos tolerante com forças convencionais que infringem as normas humanitárias dos conflitos armados do que com os crimes bárbaros perpetrados por guerrilheiros e terroristas; assim, as forças irregulares fazem uso desse fato a seu favor, gozando de maior liberdade de ação e explorando as oportunidades de propaganda oferecidas pelas unidades regulares, quando estas violam a lei da guerra ou fazem uso desproporcional da força.
  • Individualidade: Em contraste com o forte sentimento de coletividade e espírito de corpo presente nas forças armadas regulares, a individualidade caracteriza o combate irregular, normalmente concretizado por indivíduos ou grupos pequenos.
  • Maior proximidade entre os níveis político, estratégico e tático: Em oposição à necessidade militar de definir, com precisão, os níveis tático, estratégico e político da guerra – e atuar dentro desses limites – na Guerra irregular, a busca permanente por resultados psicológicos nas ações de combate e a necessidade de explorar suas consequências políticas resultam em uma menor distinção entre o político, o estratégico e o tático. Há uma frequente sobreposição entre tais aspectos. Além do mais, os parâmetros para mensurar o êxito são distintos entre as forças formais e informais.
  • Economia de forças: O combate irregular pode ser conduzido com o intuito de complementar, apoiar ou ampliar operações militares convencionais; no entanto, quando conduzidos independentemente, os conflitos irregulares dissipam o potencial inimigo, proporcionam economia de meios e evitam uma confrontação militar formal.
  • Desenvolvimento em fases: A Guerra irregular, normalmente, é dividida em fases, considerando-se os seguintes fatores: o nível de maturação das forças irregulares e o grau de deterioração dos cenários político, social e militar. As etapas iniciais têm foco na organização das forças, com ações clandestinas e busca pelo apoio da população. Os estágios posteriores do conflito, por sua vez, sinalizam um amadurecimento significativo das forças irregulares, resultando em uma atuação mais ostensiva, a condução de operações militares de maior envergadura e obtenção de um status jurídico que assegura às forças irregulares o reconhecimento como organização de luta armada e lhes concede a capacidade de atuar ostensivamente na arena política.
  • Indefinição entre os campos da segurança interna e da segurança pública: As primeiras ações de guerra irregular são conduzidas dentro de uma área nebulosa presente entre a segurança pública e a segurança interna. Uma resposta efetiva da sociedade tende a ser tardia e pode se tornar ambígua, pela dificuldade em estabelecer claramente a esfera de atuação dos diferentes agentes de segurança do Estado.
  • Dicotomia dos parâmetros operacionais: Há uma assimetria não muito clara entre os parâmetros operacionais empregados por forças regulares e irregulares, sendo que a mais importante contradição está nos objetivos perseguidos por cada uma delas no campo de batalha. Além dos objetivos específicos de uma determinada ação e dos critérios para mensurar vitória ou derrota, outros “conceitos” também possuem significados distintos, quando interpretados segundo as premissas discrepantes dos dois tipos de conflito (regular e irregular), tais como tempo e oportunidade, descentralização de ações, limites éticos número aceitável de baixas.
  • Subordinação dos objetivos militares aos objetivos políticos: Mesmo na Guerra irregular todos os objetivos militares devem se sujeitar integralmente a objetivos políticos claros e exequíveis.

OPERAÇÕES DE GUERRA IRREGULAR
Uma operação militar é a ação coordenada de militares de um determinado estado ou agentes não estatais em resposta a uma situação. Tais ações ocorrem de acordo com um plano militar que visa resolver alguma questão em nome da proteção do Estado.

Para o Ministério da Defesa (2001, pág. 195), a operação militar é aquela realizada em missão de guerra, de segurança interna, ou manobra militar, sob a responsabilidade direta de autoridade militar competente.

VISACRO (pág. 306) aponta que ordenar as práticas do combate irregular, classificando-as segundo um repertório de “operações de guerra irregular” tem utilidade meramente acadêmica, uma vez que, na prática, a sistematização doutrinária tão apreciada pelas forças formais pode ser inconveniente, pois, de certa forma, cerceia a liberdade criativa e restringe as inúmeras possibilidades decorrentes da natureza dos conflitos irregulares.

A Guerra irregular permite uma combinação ilimitada de formas de condução do conflito, e tanto os atores quanto suas ações são “rotulados” de acordo com os objetivos ou os interesses das partes oponentes, de tal modo que definir as operações de Guerra irregular requer uma abordagem mais flexível.

Como visto anteriormente, as operações consagradas de guerra irregular são a guerra de guerrilhas, o terrorismo, a subversão, a sabotagem e as operações de fuga e evasão.

A guerra de guerrilha é uma forma de guerra irregular que compreende as operações de combate executadas em território sob controle do inimigo, por forças predominantemente locais, de um modo militar ou paramilitar, a fim de reduzir a eficiência do governo estabelecido ou do poder de ocupação nos campos político, econômico, psicossocial e militar (MINISTÉRIO DA DEFESA, pág. 135).

O terrorismo é forma de ação que consiste no emprego da violência física ou psicológica, de forma premeditada, por indivíduos ou grupos, apoiados ou não por Estados, com o intuito de coagir um governo, uma autoridade, um indivíduo, um grupo ou mesmo toda a população a adotar determinado comportamento. É motivado e organizado por razões políticas, ideológicas, econômicas, ambientais, religiosas ou psicossociais (MINISTÉRIO DA DEFESA, pág. 267).

A subversão é forma de guerra irregular baseada em ações essencialmente psicológicas, diretas e indiretas, ostensivas e cobertas, legais ou clandestinas, armadas ou não, concebidas e conduzidas com o propósito de obter o enfraquecimento da estrutura psicossocial, política, econômica, científico-tecnológica e militar de um determinado regime, ao mesmo tempo em que despende esforços para difundir o proselitismo da organização militante e atrair para si, de forma progressiva, o apoio popular (MINISTÉRIO DA DEFESA, págs. 261-262).

A sabotagem abrange qualquer ação sub-reptícia, ativa ou passiva, direta ou indireta, destinada a perturbar, interferir, causar dano, destruir ou comprometer o funcionamento normal de diferentes sistemas nos campos político, econômico, científico-tecnológico, psicossocial e militar (MINISTÉRIO DA DEFESA, pág. 247).

A evasão corresponde ao deslocamento realizado em território sob o controle do inimigo, após a realização de uma fuga ou acidente de aeronave, em direção às linhas amigas. Já a operação de fuga e evasão visa a recuperar o pessoal militar amigo e indivíduos selecionados que ficaram isolados em áreas hostis ou que fugiram do cativeiro inimigo (MINISTÉRIO DA DEFESA, pág. 192).

VISACRO (págs. 307 e ss.) classifica as técnicas para a tomada do poder como destrutivas (subversão, terrorismo, sabotagem e guerrilha orientados para a desagregação da ordem estabelecida, a desmoralização de todos os meios políticos e militares do adversário, a propaganda direcionada para a opinião pública externa, a intimidação – tanto individual e coletiva – e a eliminação física dos irredutíveis) e construtivas (ações políticas e psicológicas orientadas para o recrutamento, seleção e formação de recursos humanos, a ampliação dos quadros, a difusão ideológica e impregnação psicológica, o enquadramento das massas, a edificação progressiva de hierarquias paralelas, o controle da população e a administração sobre áreas liberadas).

O autor aponta ainda (pág. 308) as fases da guerra irregular, segundo der Heydte:

  1. Preparação: Conspiração política; subversão; treinamento dos quadros; obtenção e estocagem de suprimentos; ausência de ações armadas.
  2. Combate subterrâneo: Emprego da violência sem caracterizar ações de combate; emprego da “propaganda armada”; realização de incursões armadas, emboscadas, assassinatos, sequestros, atos de terrorismo e sabotagem; não caracteriza formalmente um conflito militar, pois para pelo menos uma das partes é conveniente negar a existência da beligerância; emprego de pequenos grupos ou células; os grupos irregulares detêm a iniciativa; a maior parcela da população ainda é neutra em relação ao conflito.
  3. Transição para o combate aberto: Ampliação das formações irregulares com a criação de unidades e grandes unidades de guerrilha; Aquisição da capacidade de realizar ataques sucessivos contra posições inimigas; Não significa o fim do combate subterrâneo; As forças irregulares passam a contar com a simpatia popular, exercendo o controle direto sobre parcela da população; Realização de combates de maior envergadura, sem oferecer às forças convencionais batalhas decisivas; Ocorrência de áreas liberadas.
  4. Combate aberto: Combates convencionais de grande envergadura, com a realização de batalhas decisivas; caracteriza o “conflito armado não internacional”.

As operações de guerra irregular não são necessariamente conduzidas, de forma prioritária, contra as forças convencionais com as quais as organizações militantes se defrontam. Frequentemente, a população civil torna-se o principal alvo das ações irregulares.

FORÇAS IRREGULARES
O MINISTÉRIO DA DEFESA (pág. 123) conceitua as Forças irregulares como as forças capacitadas à execução da guerra irregular, caracterizadas por organização não institucionalizada. Em um movimento revolucionário ou de resistência, as forças irregulares são integradas por três segmentos: Força de guerrilha, Força de sustentação e Força subterrânea.

A Força de guerrilha é a Força irregular, que se constitui no elemento ostensivo e militarmente organizado que executa ações ofensivas violentas e de curta duração, levadas a termo com mobilidade e surpresa.

A Força de sustentação é a Força irregular constituída por elementos locais que atuam de forma clandestina, pois, aparentemente, não estão envolvidos com o movimento (revolucionário ou de resistência), prestando apoio (logística, recrutamento, inteligência etc.) às demais forças irregulares.

A Força subterrânea é a Força irregular constituída por elementos locais que atuam de forma clandestina, pois, aparentemente, não estão envolvidos com o movimento (revolucionário ou de resistência), executando ações clandestinas contra o inimigo (sabotagens, roubos, assaltos, sequestros etc.).

VISACRO (pág. 313) ensina que, em geral, as forças irregulares constituem o braço armado de organizações militantes que acalentam objetivos políticos mais elevados e possuem um espectro de atuação bem mais amplo do que os estreitos limites do campo militar podem oferecer. Embora não exista um padrão organizacional rígido que defina a estrutura, a composição e a articulação das forças irregulares, há um conjunto de missões, atribuições e funções essenciais a serem executadas – tais como assegurar o apoio da população, obter suprimentos, ampliar continuamente sua capacidade militar, desgastar política e militarmente o inimigo, e, em última instância, sobreviver. Cada força irregular tende a desenvolver uma dinâmica própria, adequada à sua realidade, ao ambiente político-social na qual está inserida e suas correspondentes limitações, caracterizando-se por sua flexibilidade e adaptabilidade.

VISACRO (págs. 315 e ss.) destaca que as maiores vulnerabilidades das forças irregulares estão em sua dependência vital do apoio da população, em seu sistema logístico e em sua enorme demanda por segurança orgânica. As forças irregulares estão submetidas, ao menos em tese, a um contínuo processo de desenvolvimento, relacionado ao grau de deterioração do quadro político-militar local; a expansão crescente de sua estrutura permite ampliar sua capacidade operacional, agregando novos recursos às práticas e métodos até então utilizados. A estruturação de uma rede clandestina de apoios locais é imprescindível para a sobrevivência e a expansão das forças irregulares.

A GUERRA IRREGULAR E O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO
O Direito Internacional Humanitário (jus in bello), na conceituação de PORTELA (pág. 1.005) corresponde ao ramo do Direito Internacional e do Direito Internacional dos Direitos Humanos que visa a reduzir a violência inerente aos conflitos armados, limitando o impacto das hostilidades por meio da proteção de um mínimo de direitos inerentes à pessoa humana e pela regulamentação da assistência às vítimas das guerras, externas ou internas. É também conhecido como “Direito Humanitário” ou “Direito de Genebra”.

O autor destaca (pág. 1.007) que o objetivo principal do Direito Humanitário é limitar a violência que é inerente a guerra. Nesse sentido, o Direito de Genebra não pretende eliminar toda a hostilidade que marca os conflitos armados, mas restringi-la, de modo a evitar que as ações militares atinjam pessoas e bens que não estejam envolvidos, direta ou indiretamente, de forma temporária ou permanente, nas hostilidades. É, portanto, um ramo do Direito que se aplica apenas por ocasião dos conflitos armados, sejam esses externos ou internos.

VISACRO (pág. 321) destaca que a relevância adquirida pelo Direito Humanitário, no combate moderno, não está limitada aos seus aspectos legais, indo além da subordinação do Estado e suas Forças Armadas a um arcabouço jurídico internacional que disciplina os chamados crimes de guerra; sua observância também está associada à luta pelo apoio da opinião pública, uma vez que o zelo e a sujeição aos preceitos humanitários auferem legitimidade às operações militares e à própria política do Estado.

No caso da Guerra irregular, mais uma vez é mantida sua característica de assimetria, que abrange, inclusive, a aplicação do Direito Internacional Humanitário. Como aponta VISACRO (pág. 332), as forças irregulares não se sujeitam a nenhum tipo de restrição jurídica e, ainda, exploram habilmente esse fato a seu favor, gozando de maior liberdade de ação e aproveitando as oportunidades de propaganda oferecidas pelas unidades regulares, quando estas violam a lei da guerra ou fazem uso desproporcional da força, vitimando civis inocentes.

Conforme o art. 3º comum às quatro Convenções de Genebra, em caso de conflito armado de caráter não internacional que ocorra em território de uma das Altas Partes Contratantes, cada uma das Partes em conflito deverá aplicar, pelo menos, as seguintes disposições:

• As pessoas que não participarem diretamente do conflito, incluindo membros das forças armadas que tenham deposto as armas e pessoas que tenham sido postas fora de combate por enfermidade, ferimento, detenção ou qualquer outra razão, devem em todas as circunstâncias ser tratadas com humanidade, sem qualquer discriminação desfavorável baseada em raça, cor, religião ou crença, sexo, nascimento ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo.

Para esse efeito, são e permanecem proibidos, sempre e em toda parte, em relação às pessoas acima mencionadas:
a) os atentados à vida e à integridade física, em particular o homicídio sob todas as formas, as mutilações, os tratamentos cruéis, torturas e suplícios;
b) as tomadas de reféns;
c) as ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes;
d) as condenações proferidas e as execuções efetuadas sem julgamento prévio por um tribunal regularmente constituído, que ofereça todas as garantias judiciais reconhecidas como indispensáveis pelos povos civilizados.
• Os feridos e enfermos serão recolhidos e tratados.

Um organismo humanitário imparcial, tal como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, poderá oferecer seus serviços às Partes em conflito. As Partes em conflito deverão esforçar-se, por outro lado, em colocar em vigor por meio de acordos especiais, totalmente ou em parte, as demais disposições da presente Convenção.

A aplicação das disposições anteriores não afeta o estatuto jurídico das Partes em conflito.
VISACRO (pág. 324) aponta o quão dissociado da realidade encontra-se o texto do artigo 3 da Convenção de 1949. A realidade de conflitos posteriores logo evidenciou que as leis da guerra haviam se tornado obsoletas – o que levou à edição do Protocolo Adicional II de 8 de junho de 1977, relativo à proteção das vítimas de conflitos armados sem caráter internacional. Sua aplicação, porém, é restrita, pois o próprio texto determina sua não aplicabilidade às situações de tensões internas e distúrbios internos, tais como os motins, os atos esporádicos e isolados de violência e outros atos análogos, que não são considerados conflitos armados.

Na percepção do autor (págs. 327-329), somente o Estado constituído parece estar efetivamente ao alcance dos dispositivos legais do Direito Internacional Humanitário, de modo que a sua aplicabilidade tende a restringir-se tão somente às Forças Armadas nacionais, deixando de impor-se às organizações militantes. Por sua vez, as guerras irregulares são, a princípio, consideradas perturbações ou ameaças à ordem pública e, ao se expandirem, permanecem, na maioria dos casos, enquadradas apenas como distúrbios interiores, fora, portanto, do escopo do Direito Internacional Humanitário e restritas à abrangência do direito interno.

 

Deborah C. Alves
Advogada, especialista em Administração Pública

 

Bibliografia
Artigo 3º comum às quatro Convenções de Genebra. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/document/artigo-3o-comum-quatro-convencoes-de-genebra#:~:text=Um%20organismo%20humanitário%20imparcial%2C%20tal,demais%20disposições%20da%20presente%20Convenção.
ACCIOLY, Hildebrando, SILVA, G. E. do Nascimento e Silva e CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público. – 24. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. – 13. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.
MINISTÉRIO DA DEFESA. GLOSSÁRIO DAS FORÇAS ARMADAS. Setembro de 2001. Disponível em: https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/141/1/MD35_G01.pdf.
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Direitos Humanos e Direito Comunitário. 9ª ed., rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2017.
SOUZA, MARCELO BASTOS DE. Guerra Irregular no contexto da Estratégia da Resistência. Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Rio de Janeiro, 2014.
VISACRO, Alessandro. Guerra irregular: terrorrismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história. – São Paulo: Contexto, 2009.
https://guiadoestudante.abril.com.br/coluna/atualidades-vestibular/enten....
https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_não_convencional.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Intelligentsia.

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