Pobres pagam mais imposto que ricos no Brasil. Mulheres negras são especialmente afetadas.

Juracy Braga Soares Junior
Publicado em: seg, 19/10/2020 - 11:24

Talvez você não saiba, mas o nosso Sistema Tributário foi desenhado e é continuamente aperfeiçoado para cobrar mais impostos daqueles que menos ganham. Essa frase está escrita em português. Se eu quisesse dizer a mesma coisa em “tributês”, eu diria algo como: “No Brasil, o sistema tributário é regressivo”. Pronto! Percebeu como – dessa última maneira, 99,9% dos brasileiros não entenderiam nadica de nada!?

Pois é... Talvez seja essa a face mais cruel desse sistema que – em tese – alcançaria a todos na exata proporção de sua capacidade contributiva. Ou em bom português poderíamos dizer: cobrar mais imposto de quem pode pagar mais. Mas é exatamente o contrário que o nosso sistema tributário faz.

Bom, nem vou aqui chover no molhado e falar de quão complicadas são as milhares de normas tributárias que os três entes (União, Estados e Municípios) editam anualmente. Em 2017 uma pesquisa publicada pelo Conjur apontou que – desde a promulgação da Constituição de 1988 – até julho daquele ano, foram editadas mais de 5,4 milhões de normas, sendo que especificamente para alterar tributos, a quantidade foi superior a 360 mil.

Então, como decidi escrever em português, vou focar nessa linha e trazer aqui alguns exemplos para ilustrar o que o título desse brevíssimo artigo quer dizer.

A MOTO DO ENTREGADOR DE PIZZA x “JET SKI”
A motocicleta que o entregador de pizzas usa para levar o pão de cada dia para a sua família é taxada pelo IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores em cerca de 2% sobre o valor de venda. Essa cobrança é anual. O que significa que, ao longo de 15 anos, o entregador de pizza também - “entregar” ao Estado - 30% do valor da moto na forma só desse tributo. É claro que, como é taxado pelo valor venal, a cada ano é reajustado para baixo, conforme a tabela FIPE.

Já a moto aquática, que muitos conhecem pela marca de um dos fabricantes (Jet Ski), paga sabe quanto de IPVA? ZE – RO! Isso mesmo! Se você tem uma dessas maravilhas na sua garagem, sobre a carrocinha, esperando para ir brincar nos finais de semana nos rios, represas, lagos e até no mar, sabe que jamais recebeu um “boleto” de IPVA referente à máquina, não é mesmo?

O ALVO DO SISTEMA É O POBRE
No Brasil, o Sistema Tributário é baseado – preponderantemente – na tributação do consumo, que responde por até 60% da carga bruta, se somarmos os tributos sobre o consumo com a contribuição dos empregadores para a Previdência, naturalmente repassada para os consumidores.

Então, como os pobres aplicam a maior parte de sua renda com alimentos, remédios, roupas e outros itens de consumo, por exemplo, acabam sofrendo uma tributação média de 27% por meio de impostos indiretos. Já os itens Patrimônio e Renda operam no inverso, privilegiando uma modelagem que alivia a carga dos super ricos no pagamento de tributos nos Brasil. Quer um exemplo? Vamos aos números:

O trabalhador assalariado que ganhou R$ 5.000/mês (R$ 60.000/ano) em 2019, pagou – só de Imposto sobre a Renda, algo em torno de R$ 6.067,68, sem considerar a tributação sobre o 13º salário. A conta é essa:
R$ 5.000,00 x 27,5% = R$ 1.375,00 – Parcela a deduzir de R$ 869,36 = R$ 505,64 (I.R./mensal)
R$ 505,64 x 12 meses = R$ 6.067,68.

Agora, se um empresário recebeu, em 2019 o valor mensal de R$ 500.000,00 em forma de distribuição de lucros, sabe quanto ele pagou de Imposto sobre a Renda? A resposta é ZE – RO! Sim. Isso porque o Brasil é um dos três países no mundo (junto com a Estônia e a Lituânia) que não tributa a distribuição de lucros e dividendos. Uma pesquisa realizada pelo IPEA, divulgada pelo UOL em abril de 2019, apontou que a tributação de lucros e dividendos pode gerar entre R$ 22Bi a R$ 39Bi de arrecadação tributária.

Vamos à comparação:
Empregado recebe R$ 60.000/ano em salário. Paga R$ 6.067,68 de Imposto de Renda
Empresário recebe R$ 6.000.000/ano em lucros. Paga R$ 0,00 de Imposto de Renda

BRASIL TEM CARGA TRIBUTÁRIA ALTA? ISSO É RE-LA-TI-VO
Como assim... é relativo? Essa deveria ser uma resposta simples, tipo SIM ou NÃO. Concordo. Só que temos que olhar o panorama geral. Se compararmos com alguns países desenvolvidos, como Dinamarca (45,9%); França (45,3%); Bélgica (44,3%); Finlândia (44,1%); e Suécia (44,1%), o Brasil tem uma carga tributária até menor. A média da carga tributária da OCDE gira em torno de 34,2%, o que é ligeiramente superior à do Brasil, que fica no patamar de 32% ~ 33% sobre o PIB.

Ocorre que, nos países considerados desenvolvidos, a alíquota média do imposto de renda é de 41,5%, enquanto no Brasil, a alíquota máxima é de 27,5%. Essa é uma característica que reforça ainda mais a regressividade de nosso sistema. O Brasil, ao escolher concentrar a tributação sobre o consumo, penaliza os mais pobres, que aplicam a maior parte de sua renda exatamente aí, em itens básicos de consumo, como alimentação, higiene etc.

ATÉ AS CORREÇÕES DISTORCEM MAIS AINDA
Como optou-se por concentrar a tributação no consumo, eis que surgiram com uma fórmula para “corrigir” a tal da regressividade. O pensamento foi mais ou menos assim: “ora, se cobramos mais imposto no consumo, vamos reduzir a tributação em itens de essenciais”! Aí outra pessoa falou: “já sei! Vamos reduzir a tributação sobre os itens da cesta básica! Dessa forma, os pobres poderão comprar alimentos mais baratos!”. Se você tentou comprar um quilo de arroz no mês passado, já sacou que essa ideia “brilhante” mandou uma banana para esses caras que tiveram essa ideia, não é mesmo?

Mas isso não para por aí não! Como desoneramos itens da cesta básica, e os ricos consomem mais alimentos do que pobres, adivinha quem saiu ganhando (de novo) nessa brincadeira de tributar? Os ricos! Adivinhão!!!!

DEFICIENTES RICOS X DEFICIENTES POBRES
Quer um outro exemplo de como tá tudo errado nesse nosso sistema tributário? Vamos lá! Os deputados – sensibilizados com a necessidade dos deficientes em adaptarem veículos para atender suas condições especiais, aprovaram uma legislação que isenta de impostos os carros adaptados para essa parcela da população. Até mesmo os equiparados a deficientes, têm direito à compra de veículos sem ICMS, IPI, IOF e IPVA. Dependendo do modelo, isso significa algo em torno de 30% de desconto.

Ok, você pode argumentar: “mas isso é justo!” Eu também acho que sim. Só que um deficiente que não tem dinheiro para comprar um carro, não pode comprar, por exemplo, uma bicicleta sem esses impostos. Complicado, não?

TRIBUTAÇÃO + RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL
A modelagem de nosso sistema tributário contribui para a perpetuação do Racismo Estrutural no Brasil. Se partirmos do pressuposto de que os negros são maioria no país (55% da população), e que a base da pirâmide é composta de 66% da população, que ganha entre 1 e 2 salários mínimos, resta evidente que os negros se constituem na parcela da população mais fortemente impactada pelo modelo que privilegia a tributação sobre o consumo em vez da renda.

A questão do impacto da tributação por gênero ainda é pouco explorada no Brasil. Contudo, há estudos como o intitulado Women in Tax, publicado em 2019, de autoria das Professoras Tathiane Piscitelli (FGV-SP) e Raquel Preto (OAB-SP), demonstrando que a estrutura vigente fere Princípios Constitucionais, dentre esses o da Igualdade. 

O Prof. Dr. Heleno Torres aborda o tema em um artigo publicado no CONJUR, ao ensinar:

“Os princípios do Estado Democrático de Direito não autorizam qualquer diferenciação de tratamento entre homens e mulheres. Mormente quando a Constituição, além de consagrar o princípio de igualdade, repetido no artigo 5º, I ( homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição) e no artigo 150, II (ao dizer que é vedado instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente), estabelece ainda um dever permanente de redução das desigualdades sociais ou regionais e de implementação do desenvolvimento (artigos 3º e 5º da CF). Por isso, é inaceitável que tenhamos, em pleno século XXI, discriminações ou quebras de isonomia, em matéria tributária, entre homens e mulheres.”

Infelizmente a configuração de nosso sistema tributário afeta – mais fortemente – as mulheres negras pobres.

REFORMA TRIBUTÁRIA É A SOLUÇÃO? NOVAMENTE: “DE-PEN-DE”
Lá vamos nós de novo! Como assim, depende?
Olha só... Há propostas e propostas de reforma tributária em estudo há mais de 30 anos no Brasil. Se uma reforma atua simplesmente na simplificação do sistema tributário, agrupando tributos e reduzindo a quantidade de alíquotas, então o problema da regressividade (tributação concentrada nos mais pobres) não é encarado. Novamente o que temos aqui é uma solução para os mais ricos, que são os empresários, que acabam sendo beneficiados com uma redução do custo de compliance e contencioso.

- Lá vamos nós falando grego novamente. O que são esses tais de compliance e contencioso?
- Explico: compliance é o conjunto de regras que uma pessoa (física ou jurídica) tem que cumprir para não ser multada por falta de conformidade;
- Já o contencioso é o termo que resume o local ou os esforços relacionados às defesas contra multas, que no nosso caso, são aquelas multas tributárias.

Então, para que uma reforma tributária venha – efetivamente – tornar nosso sistema tributário em algo mais justo, deve atacar o problema da regressividade de frente, reformatando a cobrança de tributos para alcançar os que mais têm recursos, redistribuindo a carga tributária de modo a promover um deslocamento do eixo de cobrança da área de consumo para as áreas de patrimônio e renda.

Esse tipo de ajuste tem a capacidade de contribuir para a redução das desigualdades e melhorar a distribuição de renda, sem descuidar da simplificação do sistema, que pode efetivamente reduzir os custos de conformidade para empresas e empreendedores no Brasil. Assim provavelmente teríamos mais condições de atrair também os investimentos produtivos, que geram emprego, renda, riqueza e tributos.

Para saber mais sobre o tema, recomendo o curso online Direito Tributário.
 

Prof. Dr. Juracy Soares
Diretor de Estudos Tributários da Febrafite; Diretor Executivo da Auditece; AFRE – SEFAZ-CE.
Doutor em Direito; Mestre em Controladoria; Especialista em Auditoria; Graduado em Direito e Contábeis; Certificação em Docência do Ensino Superior.
É professor fundador da Unieducar. Fundador e Editor Chefe da Revista Científica Semana Acadêmica.
Pesquisador em EaD/E-Learning.

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