“Tenho dinheiro para comprar 2 hospitais, mas não tenho leito para minha mãe”

Juracy Braga Soares Junior
Publicado em: ter, 16/03/2021 - 11:34

A frase que intitula este artigo foi publicada na conta do Twitter do Daniel Adjuto (1). A expressão teria sido um ‘desabafo’ de um empresário multimilionário curitibano ao prefeito daquela capital, o Rafael Greca.  Essa frase em tom de desespero é paradigmática sob vários pontos de vista. E nesse post vou comentar superficialmente sobre minha visão a partir desse mote.

A primeira expressão que devemos desmistificar é a de que ‘supostamente’ estaríamos – frente à pandemia – no mesmo barco. Há uma outra que ‘suaviza’ essa afirmação que seria: ‘Estamos todos na mesma tempestade, só que em barcos diferentes’.

Não. Isso além de ser uma inverdade, se constitui em um conjunto de afirmações míopes, cruéis e covardes. Dizer que uma família rica estaria a enfrentar a situação de calamidade que assola o mundo nas mesmas ‘condições climáticas’ que uma família de miseráveis é algo que beira a insanidade. É algo digno de quem vive em uma bolha de fantasia.

Nem sequer na mesma tempestade estamos. Pare um pouco; vá até a sua geladeira e despensa. Observe que estão repletas de comida e bebidas. Se isso não lhe trouxer de volta à realidade, então você deve procurar imediatamente tratamento. Agora imagine – só por um instante – que milhões estão agora mesmo tendo que dividir um pacote de bolachas.

Voltemos à frase do bilionário curitibano que intitula este post: “Tenho dinheiro para comprar 2 hospitais, mas não tenho leito para minha mãe”. Isso diz muito sobre nosso atual estágio de distribuição de renda em nosso país. Como dito e sabido, o Brasil é o segundo país com a pior distribuição de renda do mundo, perdendo apenas para o Catar, nos Emirados Árabes Unidos (EAU). Você pode conferir uma matéria sobre o tema no site da FIESP, que vou deixar no final do texto (2).

Nosso sistema tributário contribui fortemente não só para a concentração de renda, ao cobrar mais impostos de quem menos ganha. Não. Você não leu errado nem me equivoquei na ordem das palavras. O Brasil cobra mais impostos dos mais pobres, proporcionalmente à renda. Sobre esse ponto eu já escrevi alguns artigos que cito a seguir:

Um paraíso fiscal chamado Brasil
No condomínio Brasil moradores da cobertura pagam as menores taxas
Auxílio Emergencial, Renda Básica Universal e Renda Básica de Cidadania 

Brasil cobra mais imposto dos mais pobres. E o que é possível fazer para corrigir isso 
Pobres pagam mais imposto que ricos no Brasil. Mulheres negras são especialmente afetadas

Esses argumentos acima são uma pista do que ocorre no país. Eles oferecem também uma visão real do que o nosso empresariado entende sobre o tamanho do Estado e o papel que eles podem ou pelo menos deveriam desempenhar numa sociedade sustentável.

A sustentabilidade é um termo que se aplica também aos seres humanos. O nosso ‘meio ambiente’ como pessoas é algo a ser preservado também. Isso parece óbvio, mas é algo distante de uma aplicação prática responsável. Mesmo que o Estado brasileiro entregue cerca de R$ 300 Bi em isenções de impostos para as empresas e empresários mais ricos, o que vemos em troca?

Eu até fico assistindo às entrevistas de CEOs em PodCasts, rádios e jornais onde há uma pressa em alegar que são ambientalmente responsáveis e que adotam as melhores práticas disso e daquilo outro. E agora a palavra ou ‘sigla’ da moda é o ESG, acrônimo em inglês para Environmental, Social and Corporate Governance. Em português seria algo como ‘Governança Ambiental, Social e Corporativa’’.

Pois bem, voltamos (mais uma vez) à frase mote do post: “Tenho dinheiro para comprar 2 hospitais, mas não tenho leito para minha mãe”.

Será que esse empresário ou alguns de seus CEOs já não concederam entrevistas se vangloriando do quão responsáveis (social e ambientalmente) são frente às suas gestões?

Quantos milhões por ano as empresas desse megaempresário recebem do Estado em forma de isenções e demais benefícios tributários, como regimes especiais de tributação, reduções de base de cálculo etc., etc., etc.?

Isso nós jamais saberemos. Motivo? Porque esses ‘favores fiscais’ são guardados a sete chaves. Os contratos que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios firmam com essas mega empresas são mantidos no mais absoluto sigilo. Duvida? Procure saber quanto a maior empresa que opera em seu Estado recebe de benefícios fiscais!?

Aí alguém poderia dizer: Ah, mas um empresário não tem responsabilidade para com esse tipo de ação, que se constitui em uma obrigação do Estado. Aaaahhh... E porque só as grandes empresas e os bancos recebem nacos de privilégios tributários?

Pode pesquisar: todos os empresários que agora clamam do Estado o pagamento do Auxílio Emergencial para reativar a economia, são os mesmos que defendiam – antes da pandemia – que o Estado não deve se meter no mercado. Na tempestade correm para o Estado. Na bonança, clamam pelo ‘Estado Mínimo’.

Sobre esse ponto, é interessante relermos uma reportagem que relata uma frase do grande (e festejado) empresário Abílio Diniz onde ele diz: “Guedes é liberal, mas na crise, somos todos keynesianos” (3). Essas palavras, proferidas em março de 2020, quando a pandemia estourou, revela bem o ‘estilo’ de governança da maioria dos mais bajulados empresários que – mamando nas tetas do Erário – recebem os mais variados favores fiscais em forma de isenções ou reduções de impostos. Mas, nem por isso defendem que o Estado não se meta no mercado; que o Estado tem que ser mínimo; e por aí vai. Contudo, no primeiro sinal de crise, correm todos para debaixo das asas do Governo, onde em jantares e almoços VIPs combinam mais algumas rodadas de leis e decretos para acomodar seus empreendimentos.

Então, deparando-nos com a afirmação do bilionário curitibano, que tem dinheiro para construir dois hospitais, mas não encontra lugar para deitar sua querida mãe, deixo aqui mais algumas perguntas:

Você conhece alguma ação em que uma empresa ou grupo de empresas fez doações de um hospital para a sua cidade ou Estado?

Você pode até dizer algo do tipo: Ah, mas o banco tal doou X milhões. A empresa ou empresário Tal está organizando essa iniciativa Y. Mas isso com certeza é – proporcionalmente, infinitamente menor do que todas as iniciativas que são organizadas pela sociedade, que – no pouco que possui – se organiza e consegue dar respostas muito mais rápidas e efetivas. É também insignificante frente ao que se esperaria de alguma empresa ou empresário com o mínimo senso de empatia social.

Vez por outra assisto estupefato matérias na imprensa festejando o fato de que um grande conglomerado empresarial está ‘doando’ R$ 1 milhão em insumos etc. Caramba! Que ridículo! Não é uma só empresa! É um conglomerado de empresas que fatura bilhões de reais por mês! E que paga menos impostos que a pizzaria da esquina!

Não estou escrevendo este texto para demonizar empresas e empresários. Longe disso. Reconheço o papel das empresas como motores na geração de riqueza. O ponto para o qual quero chamar atenção aqui é para algo chamado reciprocidade. Ainda mais no atual estágio da guerra que estamos atravessando.

Aqui uma pausa para reflexão. Mesmo que fosse um ato egoísta da parte das empresas – que decidissem se organizar para tal – seria justificável, uma vez que quanto mais rápido sairmos dessa crise, mais cedo as empresas voltam a faturar.

Mas, me diz aí, quais das entidades representativas da classe empresarial (agro, indústria, comércio e serviços ou financeiro) se organizou para entregar um hospital para a sua cidade? Se você souber, me avisa!

E – novamente – não me venha com justificativa de doações miseráveis de um milhão. Isso é esmola! Um hospital de porte médio custa R$ 100 milhões. Isso é insignificante frente à capacidade financeira que as grandes corporações (ainda mais unidas em uma entidade de classe empresarial) tem.

Em vez disso você dever ter lido muitas notícias sobre fusões e aquisições trilionárias em plena pandemia. Lembra? Lembra daquele grupo empresarial que comprou o outro por alguns bilhões!?

Para finalizar: O Estado do Amazonas abre mão de mais de 60% de sua receita tributária para as grandes empresas que operam na Zona Franca de Manaus (4). E enquanto milhares de amazonenses morriam sufocados, não vimos a inciativa do conjunto de empresas daquele parque industrial em construir uma usina de produção de oxigênio para atender à demanda dos hospitais.

Novamente. Não estou apontando exclusivamente para as empresas. Já escrevi bastante indicando que o atual estágio de colapso de nosso sistema de saúde tem raízes lá atrás, especialmente quando usamos trilhões de reais em impostos para construir estádios (arenas) para a copa de 2014 até em cidades que nem times de futebol possuem.

Mas – para as empresas – especialmente as que alardeiam serem ‘ESG’, já está passando da hora de assumirem um papel de protagonismo e empatia.

Prof. Dr. Juracy Soares
É professor universitário, fundador da Unieducar. É fundador e Editor Chefe da Revista Científica Semana Acadêmica. Graduado em Direito e Contábeis; Especialista em Auditoria, Mestre em Controladoria e Doutor em Direito; Possui Certificação em Docência do Ensino Superior; É pesquisador em EaD/E-Learning; Autor do livro Enrqueça Dormindo.

 

REFERÊNCIAS:
@DanAdjuto – Twitter
https://www.fiesp.com.br/sietex/noticias/brasil-tem-2a-maior-concentraca....
https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/03/26/guedes-e-liberal-mas-na...
https://www.febrafite.org.br/wp-content/uploads/2019/07/renunciasICMS201...

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