Publicado em: qua, 24/03/2021 - 07:59
“Quer que eu faça o recibo de quanto, doutor?”. Essa era a pergunta feita por 99% dos motoristas de táxis quando chegávamos ao destino. Por alguns anos atuando como representante de entidades de classe, eventualmente usava esse serviço quando viajava representando essas instituições. E, via de regra, sempre que ia pagar o motorista, essa pergunta me era feita. A minha resposta era invariavelmente a mesma: ‘’faça o recibo no valor da corrida, que é o valor que eu vou lhe pagar’. E em várias dessas ocasiões eu ainda ouvia uma contra-argumentarão, mais ou menos assim: “Eu pergunto porque sempre me pedem para colocar um valor mais alto”.
Milhões de brasileiros bradam por moralidade no serviço público, especialmente quando cobram dos políticos uma postura ética, honesta. Contudo, há uma cultura de sustentação de práticas de corrupção que supostamente ‘não faz mal porque é pouco’.
O tema ‘fraude’ é bastante antigo, mas, por incrível que pareça, continua atual devido à profusão de escândalos descobertos envolvendo as mais variadas fraudes em prestações de contas. Essas fraudes envolvem os mais diversos atores, de colaboradores de empresas privadas, passando por candidatos a cargos eletivos e até mesmo políticos que cumprem diversos mandatos fraudando prestações de contas de verbas que deveriam ser usadas como suporte ao mandato.
Dentre as mais variadas fraudes, neste artigo examinamos uma parte dessas, praticada com a manipulação de relatórios de prestações de contas. A utilização de documentos fiscais como Notas Fiscais e Cupons Fiscais tenderia a emprestar uma certa ‘credibilidade’ à suposta prestação de contas, pelo fato de envolver documentos ‘oficiais’.
O principal motivo para o cometimento de fraudes em prestações de contas é o encobrimento da apropriação indevida de recursos que deveriam ter uma destinação específica, mas que foram desviadas (geralmente) em favor da pessoa – física ou jurídica – que apresenta a referida prestação de contas.
Das fraudes em prestação de contas – especialmente envolvendo a apresentação de notas fiscais – a seguir listamos algumas das mais comuns:
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01.: USO DE NOTAS FISCAIS IDÔNEAS DE EMPRESA ‘NOTEIRA’ (INIDÔNEA):
Aqui a prestação de contas faz uso de notas fiscais regularmente autorizadas, pertencente a uma empresa constituída seguindo todas as exigências formais. Ocorre que as chamadas empresas ‘noteiras’, apesar de cumprirem com todos os requisitos formais e legais relativos à sua constituição, não têm legitimidade para emitir os referidos documentos fiscais, pelos seguintes motivos:
• São – via de regra – empresas que foram criadas com o fim específico de ‘vender’ notas fiscais. Ou seja, não realizam - efetivamente – os atos negociais que estão registrados nos respectivos documentos;
• Quando emitem NF de vendas de produtos – na maioria das vezes – sequer realizaram compras daquelas mercadorias que declaram terem vendido;
Essas empresas ‘noteiras’ são geralmente constituídas em nome de ‘laranjas’. Esses ‘laranjas’ são pessoas físicas que – sabendo ou não – emprestam seus nomes para a criação dessas instituições de fachada a troco de uma remuneração. Nesse quesito há variações da prática, que não será objeto de exame neste artigo.
As prestações de contas que supostamente ‘comprovam’ o gasto por meio de Notas Fiscais emitidas por empresas ‘noteiras’ são mais comumente usadas para justificar supostas prestações de serviços, tendo em vista que – por não possuírem materialidade, são mais facilmente usados para forjar os gastos que se deseja comprovar com a apresentação da referida documentação. Contudo, há também utilização para ‘comprovar’ gastos com mercadorias, especialmente quando a referida mercadoria é objeto de Substituição Tributária (que será tratada mais à frente).
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02.: USO DE NF FRIA DE EMPRESA IDÔNEA:
Trata-se da falsificação de um documento fiscal de uma empresa idônea, que está regularmente constituída; que pratica aquela atividade comercial; e que tem capacidade negocial para suprir aquela operação que supostamente foi praticada.
Contudo, a referida empresa jamais emitiu aquele documento, que foi falsificado por meio de técnicas de adulteração de documentação. Com o advento da Nota Fiscal Eletrônica, a ‘falsificação’ de uma NFe é praticamente impossível. Sim, tendo em vista que a NFe não é um documento físico e, portanto, não possui existência material. Sua ‘existência’ e validade dependem de uma confirmação online, realizada por meio de consulta da chave eletrônica nos sites oficiais do governo.
Contudo, a representação física (material) do documento eletrônico (imaterial) é o DANFE. E o DANFE pode ser objeto de uma adulteração simples de fazer, com o uso de qualquer software de edição de texto. Obviamente – como não há como adulterar uma chave eletrônica – os criminosos inserem uma chave existente e pertencente a outro documento ou inserem uma chave inexistente.
Então, até que alguém consulte a validade do referido DANFE a partir da chave da NFe, aquele documento pode passar por legítimo. Essa prática poderia ser reduzida – se e quando – todos os sistemas de prestações de contas estiverem interligados com o correspondente validador de autenticidade online.
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03.: USO DE NF IDÔNEA, DE EMPRESA IDÔNEA:
Esse caso é bastante comum, especialmente em relação à apresentação de prestações de contas de supostos gastos envolvendo mercadorias sujeitas à Substituição Tributária do ICMS.
É o caso, por exemplo, dos combustíveis, que são tributados na fonte (refinaria ou distribuidora de petróleo), desobrigando toda a cadeia posterior (postos de combustíveis) em relação ao recolhimento de impostos (federais e estaduais).
Dessa forma, e como o consumidor final em mais de 90% dos casos não pede a NF ou o CF, o posto é praticamente obrigado a emitir um grande volume de NFs de vendas de combustíveis (todos os meses) simplesmente para dar baixa em seu ‘estoque fiscal’.
Ou seja; na realidade ele não possui mais aquele combustível (estoque real). Contudo, como não emitiu os documentos fiscais que comprovariam a saída (venda) daquele volume, continua com o chamado ‘estoque fiscal’.
Para dar saída (vazão) ao seu estoque fiscal, muitos postos de combustíveis necessitam emitir – no fechamento de cada mês - documentos fiscais compatíveis ao volume de saída real. É aí que muitas pessoas (físicas e jurídicas) fazem uso desse tipo de documento para ‘comprovar gastos’ num determinado mês.
Pelo simples fato de os impostos federais (PIS e COFINS) e estadual (ICMS) já terem sido recolhidos pela refinaria (já chegaram ao posto pagos) e não serem mais exigíveis do posto (ponta da cadeia), esses estabelecimentos podem (na verdade, devem) emitir notas fiscais em volume compatível com a saída real.
É, portanto, bastante comum que – especialmente nas prestações de contas em que há um ‘teto’ para gastos com combustíveis - esses valores sejam apresentados como ‘gastos’, todos os meses, exatamente até o referido limite. Ou seja, é possível observar que – para aqueles agentes que podem, por exemplo, gastar até R$ 5.000,00 em combustíveis por mês, não espantaria que encontrássemos todas as prestações de contas contemplando os gastos com combustíveis sendo ‘comprovados’ com notas que somam exatamente aquele valor.
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04.: USO DE NF IDÔNEA, DE EMPRESA IDÔNEA, EM PRODUTOS/SERVIÇOS NÃO ENTREGUES:
Essa situação é comum em todas as situações em que – agindo em conluio com o fornecedor – o aplicador do recurso combina a entrega parcial, atestando 100% da entrega. A diferença é objeto de apropriação pelos fraudadores.
Vejamos, por exemplo, uma construção de uma estrada onde o órgão faça uma previsão – no projeto – de um aterro de X mil metros cúbicos. Contudo, no momento da medição, a fiscalização atesta como entregue todo o volume contratado, mesmo verificando que só uma parte foi efetivamente materializada.
Esse tipo de situação pode ocorrer em várias obras e/ou serviços onde é difícil realizar uma aferição precisa, como aterros e reaterros, estradas, obras de drenagem e esgotamento sanitário etc.
Uma variação dessa prática criminosa funciona quando o item adquirido é uma criação do intelecto. Diferentemente de itens que possuem preços de mercado e podem ser facilmente verificados, como carteiras escolares, por exemplo, a aquisição de itens que advém da criação não têm como ter o preço aferido. Essa variação se constitui em superfaturamento disfarçado.
Para encerrar este breve post, vou relembrar um escândalo político amoroso que – após descoberto – acabou revelando uma ‘prestação de contas’ que se revelou fraudada e culminou com a renúncia do então presidente do Senado Federal à época. Lembra que o senador Renan Calheiros teve o caso extraconjugal com a jornalista Mônica Veloso? O político teve uma filha fora do casamento e, para dar conta de pagar a pensão alimentícia, quis fazer prova de que tinha capacidade financeira para arcar com os altos valores entregues à sua amante. Ocorre que a investigação dos peritos revelou que as notas fiscais e guias de transporte de gado estavam sendo usados de forma a fraudar a prestação de contas. Quer saber mais sobre esse episódio? Acesse então o artigo sobre Prevenção à Lavagem de Dinheiro aqui no Blog Unieducar.
Prof. Dr. Juracy Soares
É professor universitário, fundador da Unieducar. É fundador e Editor Chefe da Revista Científica Semana Acadêmica. Graduado em Direito e Contábeis; Especialista em Auditoria, Mestre em Controladoria e Doutor em Direito; Possui Certificação em Docência do Ensino Superior; É pesquisador em EaD/E-Learning; Autor do livro Enrqueça Dormindo.